Marcelo Conde nasceu no Rio de Janeiro. Viveu também em São Paulo, até se mudar, em 2019, para Barcelona. Hoje vive em Madri. É autor dos romances Amanhã vai ser pior (Editora Patuá, 2021) e Ao perdedor, os pombos (Aboio, 2024).
Minha casa fica em Ipanema, na rua Vinícius de Moraes — que até bem pouco tempo atrás minha mãe continuava chamando de Montenegro. O apartamento tem dois quartos, e o quarto onde ela dorme funcionava como meu escritório. Meus livros e anuários de propaganda estão lá. Na verdade, minha mãe não tem um quarto, mas uma cama de solteiro no meio dos meus livros. Comprei também uma mesinha de cabeceira para ela poder apoiar o aparelho de surdez, os remédios e um copo d’água para a madrugada. O copo sempre amanhece cheio e, por dias, nem preciso trocar a água. Talvez Teresa troque durante a tarde. No armário do quarto ficavam meus sapatos. Doei alguns, apertei os outros e abri espaço de uma porta para que minha mãe pudesse guardar as roupas. Ao lado da porta de entrada, grudei três Glades spray para disfarçar o cheiro de urina. As fraldas geriátricas até seguram bem os vazamentos do xixi, mas o fedor reencarna a cada segundo, apesar das janelas e da porta estarem sempre abertas. O cheiro invade a casa e deve invadir também as ruas.
Envolvi o colchão da cama com um plástico e os lençóis são trocados e lavados pela Teresa todos os dias. A máquina de lavar trabalha mais do que qualquer brasileiro vivo. E sou o principal cliente de Downy e de Omo. Semana passada peguei o elevador junto com a vizinha que mora embaixo do meu apartamento. Ela puxou o ar com força duas vezes, olhou para cima, respirou de novo. Podia jurar que a qualquer momento, enquanto segurava um saco de papelão com batatas, ela comentaria sobre o fedor de xixi.
Já passava das oito da noite. Duas horas depois que minha mãe tinha saído para sua última caminhada diária com Teresa. Mesmo assim o cheiro continuava lá, igual a ascensorista: subindo e descendo, acompanhando quem entrava e saía do elevador. Na manhã seguinte, quando ia para o trabalho, ainda senti o xixi ali. Ninguém entrou no elevador até eu chegar na garagem — e não pude confirmar se o cheiro também era sentido pelos outros.
Minha casa tem apenas um banheiro, mais próximo do meu quarto que do outro. Coloquei um banquinho de plástico dentro do box para que Teresa dê banho na minha mãe. Apesar dela poder andar por quinze minutos na rua, não é aconselhável que fique o mesmo tempo em pé sobre uma superfície com água, sabão e shampoo. O banho acontece de manhã, logo que a enfermeira chega. A essa hora, já saí do chuveiro. Tenho um rodo no box para levar o resto da água ao ralo e deixar o chão mais seco.
A enfermeira não precisa de uma cama. Ela chega às oito da manhã e sai às oito da noite, mesmo quando peço para que fique mais. Há dias em que demoro mais no trabalho, dias em que o trânsito está ruim. Há dias em que pretendo sair com uma mulher nova, ou mesmo velha, tipo a Júlia. Não importa, às oito da noite, Teresa larga a caneta. Ameaça ir embora e nunca mais voltar. Diz que vai me colocar na justiça porque eu não assino a carteira, que doze horas de trabalho é um absurdo. Doze horas, na verdade, é pouco para mim. O horário de um publicitário não é fixo, nem controlável. Tem a minha vida social, que é parte do trabalho também. Preciso comer alguém eventualmente.
Desde que minha mãe veio morar comigo, só consegui comer a Júlia. E a Júlia não conta. Saímos há mais de quinze anos, mas nunca houve nada oficial. Trabalhamos juntos, como estagiários, num escritório de direito trabalhista. Antes de começar em propaganda, eu cursava direito na PUC e consegui um estágio no escritório de uma amiga da minha mãe. Júlia estagiava lá quando cheguei vestindo um terno emprestado, cor de telha e largo, com os fundilhos quase chegando aos joelhos, uma gravata florida e um sapato preto com solado de borracha. Meu futuro na carreira de advogado deve ter acabado ali, embora eu tenha ficado dois meses no escritório. O trabalho consistia em ler o diário oficial, recortar o que interessava para os advogados e colocar numa espécie de agenda, com as datas correspondentes aos dias. Além disso, passava horas no fórum para fotocopiar atas e dar entrada em petições. Era fascinante.
O escritório tinha uma sala grande onde ficavam um advogado, três advogadas e dois estagiários, e outra sala para Dra. Mirtes, a dona do negócio. Dra. Mirtes usava tantas pulseiras nos braços que, três minutos antes de abrir a porta, já sabíamos que ela tinha chegado. Todos os advogados a chamavam de doutora, coisa que nunca entendi muito bem. Doutora, para mim, só médica. Advogada? Por quê? Eu chamava a Dra. Mirtes de Mirtes mesmo. O máximo que poderia me acontecer era perder um estágio que demorei apenas um dia para descobrir que odiava.
Ir para a PUC de manhã já montado de advogado, depois pegar um ônibus da Gávea até o centro, na hora do almoço, não era muito a minha ideia de futuro. Acho que fez sol todos os dias em que estagiei de terno. Eu suava tanto no ônibus que a camisa ficava transparente nas costas, grudada. E, antes de entrar no escritório, eu colocava a parte de cima do terno para disfarçar a camisa molhada. O que só me fazia suar mais e encharcar ainda mais a camisa. Algumas gotas desciam até o início da minha bunda, só parando no elástico da cueca.
Mas a profissão de advogado tinha algo que eu gosto: escrever. Advogados precisam escrever o dia inteiro, eu achava. As petições que os estagiários levam e trazem do Fórum são escritas por advogados. Eu queria ser esses caras e passar o dia no ar-condicionado do escritório escrevendo, enquanto outros estagiários com ternos emprestados e camisas grudadas nas costas iriam às varas. No entanto, mesmo essa parte do trabalho não existia. Havia um modelo pronto, em cada computador do escritório, para todo tipo de petição possível e bastava trocar os dados dos clientes e das partes do processo.
Um dia, depois de recortar e colar quase cinquenta pedaços do diário oficial, fui ao Fórum tirar cópias das atas. Eu ainda era bem novo e nem a carteira de estagiário da OAB eu tinha. E era sempre preciso negociar com os funcionários das varas para que, mesmo assim, liberassem as atas para eu poder fotocopiá-las. Uma negociação não muito complicada, ao menos para quem está disposto a fazê-la. Não era o meu caso. A primeira vara que eu fui estava lotada. Estagiários tão jovens quanto eu buscavam espaço na bancada estreita onde eram atendidos pelos funcionários. Sabiam o nome deles, fingiam intimidade, um grito aqui, um por favor mais ao lado, esticavam o braço para mostrar suas carteirinhas da OAB. Pareciam um cardume de carpas esperando um pedaço de pão. Quando um deles conseguia sua ata e saía, outro já entrava no mesmo lugar.
Não ter a carteira da OAB foi a minha salvação oficial para a função de fotocopiador do escritório. Quando a vara estava cheia, usava a desculpa de que o funcionário não me deixou fazer as copias. Em pouco tempo, mesmo que a vara estivesse vazia, voltava para o escritório sem as atas copiadas.
— Júlia, não consegui tirar as cópias.
— De novo?
— Difícil. Os caras não deixam sem a carteirinha.
— Puxa a cadeira e senta aqui, por favor.
Levei minha cadeira até a mesa dela, com o encosto virado na posição contrária. Sentei como se estivesse montando numa moto, com as pernas abertas, de frente para Júlia. Na mesma hora o fundilho da calça cedeu, rasgando no caminho da costura, do saco até a bunda.
— Tem que insistir, Eduardo. Isso vai começar a dar problema nos processos, vai estourar na mão de um advogado. O escritório pode perder uma causa, já pensou nisso?
— Júlia, minha calça rasgou.
— Eduardo, presta atenção. O que eu estou falando é sério.
— Tudo bem. Eu ouvi. Juro que ouvi. Mas me ajuda, a calça rasgou. Puta que pariu.
Levantei e abri o buraco para que ela pudesse ver. Júlia balançou a cabeça, com impaciência leve.
— Eduardo, olha pra mim.
— Não posso conversar com você desse jeito, desculpa. O que eu faço com o buraco?
Uma das três advogadas guardava uma pequena caixa de costura no escritório, duas ou três linhas de cores diferentes. Tirei a calça no banheiro e passei para Júlia que, do lado de fora, costurou o rombo de forma grosseira. Mas era o suficiente para me trazer de volta o mínimo de dignidade até terminar o dia. Ainda sentado só de cuecas do lado de dentro do banheiro, escutei Júlia repetir, com a voz abafada pela porta que nos separava, o alerta sobre a cópia das atas. Por cinco minutos, ela tentou salvar a minha calça e o meu emprego. Mas tanto um quanto o outro tinham buracos que ela não poderia fechar direito.
Continuei a evitar as fotocópias das atas, muitas vezes nem sequer entrava no TRT. Em frente ao Fórum, havia uma barraquinha de cachorro-quente com o rádio ligado o tempo todo nos programas de esporte. E comer qualquer sanduíche ouvindo o programa de rádio do Apolinho Washington Rodrigues era muito melhor do que passar o dia sendo operador de máquina de xerox. Eu virava o catchup no segundo hotdog quando Júlia me viu. Saía do fórum carregada de pastas de processos.
— Eduardo, vamos tomar um café em algum lugar?
— Agora? Já são quatro e meia. Por que a gente não toma um chope mais tarde? — respondi antes de morder o sanduíche e limpar os cantos da boca com a língua, sem saber se continuava sujo, se Júlia olhava para a minha boca ou para a mancha de catchup na minha bochecha.
— Não estou chamando você para sair.
— Não? — perguntei, fingindo surpresa.
— Não.
— Mas eu estou.
— Olha, eu só quero conversar com você sobre trabalho. É sério.
Terminei o último pedaço e finalmente pude usar as mãos para passar o guardanapo na bochecha, onde a língua não alcançava. Mais dois guardanapos para limpar os dedos. Esses guardanapos que lembram seda para maconha nunca limpam direito, apenas jogam a sujeira de um lado para o outro eternamente. Me ofereci para segurar as pastas dos processos. Fiz sinal para que fôssemos andando na direção do escritório. Desde aquela época, Júlia é bem magra, os braços fininhos demais para aguentar as pastas.
— A gente pode conversar sério tomando um chope. Aqui no centro mesmo, no Amarelinho.
— Prefiro um café agora.
— Você não bebe?
— Claro que bebo — ela respondeu virando rápido a cabeça na minha direção, como se tivesse acabado de sofrer uma ofensa grave.
— Mas não comigo?
— Não é isso. Nada a ver. Eu só não queria transformar essa história num evento. Só preciso entender algumas coisas sobre você, contar o que está me agoniando.
Nos separamos por alguns segundos quando outras pessoas, no fluxo contrário, passaram entre nós dois. No centro, as marquises não servem para proteger da chuva, mas sim dos pingos dos aparelhos de ar-condicionado dos prédios, e as calçadas ficam lotadas sob a cobertura. É preciso virar o tronco de lado enquanto se anda para a frente, ou dar passos para a direita e para a esquerda, evitando os encontrões do contrafluxo. Viramos na rua do escritório, a Araújo Porto Alegre, menos lotada do que as grandes avenidas. Pude andar lado a lado com Júlia de novo.
— Júlia, falando sério. Já entendi que você não tinha nenhuma intenção de me chamar para sair e tudo bem por mim. Mas eu estava precisando de um chope hoje, não aguento mais tomar café. Já virei três copos cheios só na parte da tarde. E eu estou devendo uma grana para você.
— Me devendo?
— Você costurou a minha calça.
Ela riu, finalmente. Entramos no prédio do escritório. O chão de mármore caro não aceitou o solado de borracha do meu sapato da Uruguaiana e eu quase derrapei.
— Vamos lá, Júlia. Deixa eu pagar um chope para você.
Mirtes demorou para sair naquele dia, atrasando o chope no Amarelinho. Ela fica até mais tarde no trabalho sempre que os filhos vão jantar na casa do pai, seu ex-marido. Deve abrir a porta da sua casa enorme, ainda maior nessas noites, e acender as luzes. Estar sozinho é não ter ninguém para acender as luzes de casa antes de você chegar. As pulseiras tocam sua música sem plateia, os saltos fazem mais barulho do que o normal, o microondas apita com eco. Mirtes, Dra. Mirtes, come na bandeja de frente para a televisão a sobra do jantar da noite anterior, um estrogonofe que os filhos deixaram, a lembrança azeda de um casamento que a doutora não conseguiu defender de uma ninfeta vinte e três anos mais nova.
Talvez o certo fosse ter pena da Mirtes. Mas a demora só me deixava sentir raiva dela. Cada minuto que passava diminuía as chances de comer a Júlia logo depois do chope no Amarelinho. Era preciso tempo para deixar que o assunto sério fosse perdendo sua importância com os goles e virando, aos poucos, uma piada, uma história da adolescência, uma banalidade, um comentário fofo, uma leve confidência sexual envergonhada, um contato físico involuntário, um carinho no cabelo, depois na orelha, uma cheirada no pescoço, um pau duro, um beijo na boca, a conta, o carro, a cama, a foda. Há um risco muito grande de tentar ir do assunto sério direto para a foda. A mulher pode se assustar e você tem que voltar muitas casas. No caso da Júlia, voltar à conversa que tivemos desde que ela me encontrou quando saía do Fórum. Ou até antes disso, aos meus primeiros dias de estágio.
Mirtes saiu deixando as luzes de sua sala acesa, para que alguém as apagasse por ela. Júlia e eu descemos cinco minutos depois. No Amarelinho, o chope não estava tão gelado quanto eu gostaria que estivesse.
— Eduardo, estou preocupada com você — Júlia deu o primeiro gole, colocou o cabelo para trás da orelha e baixou a cabeça, tímida.
— Comigo? Não precisa se preocupar comigo. Eu vou ficar bem.
— Na verdade, estou preocupada que você me prejudique.
O Amarelinho parecia o refeitório de um gigantesco escritório de advocacia. Em todas as mesas, ternos cinzas ou pretos, camisas azul-claras, gravatas. As conversas berradas, tão genéricas e óbvias, se misturavam entre as mesas. Homens, mulheres, conhecidos íntimos ou distantes riam entre os copos, os vidros ricocheteavam o som.
— Eu? Mas eu nunca faria alguma coisa que prejudicasse você.
— Você já faz, Eduardo.
— Como assim? — Espetei uma azeitona, surpreso.
— O que você pretende com esse estágio, Eduardo?
— Não sei.
— Não sabe?
— Não. Você sabe?
— Claro que sei. Eu estou aqui para virar uma advogada, ser contratada quando acabar o estágio.
— Nesse escritório de merda?
— Por que você acha esse escritório uma merda?
Eu esperava que qualquer pessoa minimamente inteligente considerasse, depois de alguns meses trabalhando na profissão, não apenas o escritório da Mirtes uma bosta, mas todos os outros escritórios também. O nosso escritório, por exemplo, defendia uma empresa de recolhimento de lixo contra os garis que, demitidos, entravam com uma ação trabalhista na justiça. Isso, por si só, era a definição da carreira de advogado. Por trás dos perfumes Chanel, dos sapatos de couro Ferragamo e dos ternos da Burberry, havia sempre uma mão suja. Por trás das vossas excelências, dos doutores, havia um português empolado, irreconhecível, as palavras seguindo uma desordem, como se todos fossem o mestre Yoda. Advogados e juízes mancomunados, se levando muito a sério enquanto, em seus escritórios e em suas varas, estagiários tiram cópias de atas e petições são escritas por programas de computador. O problema não era um advogado defender os ricos contra os miseráveis. Era mexer com o lixo posando de nobre.
— Eu não acho. Desculpe, Júlia. Mas por que estou atrapalhando a sua carreira?
— O negócio das atas, dos processos. Você nem tem lido o Diário Oficial direito.
— Júlia, você não pode levar isso a sério.
— Isso é sério. Dá merda. Hoje de manhã já deu merda.
— O que aconteceu?
— Aconteceu que saiu uma notificação sobre o processo de um cliente no Diário Oficial, ninguém tinha recortado e colado na agenda. Os advogados vieram me cobrar.
— Tudo bem. Eu assumo a culpa. Eu explico pra todo mundo lá que a gente divide o D.O., que cada um lê uma parte e que a falha foi minha.
— Eduardo, nós somos estagiários. Você acha que eles se importam? Você acha que eles querem saber quem fez isso? Quem deixou de fazer aquilo? Eles querem saber que podem confiar na gente. Ou pelo menos saber que não precisam se preocupar com essas coisas pequenas, menores, burocráticas do escritório.
— Tudo é burocrático no escritório. No direito.
— Você entendeu o que eu estou falando.
Júlia já estava no terceiro chope, mas continuava levando a conversa muito a sério, sem ceder. As bochechas um pouco vermelhas, mas a voz ainda era a mesma. Ela continuava recostada, ao fundo da cadeira, o corpo longe da mesa. Cruzou a perna para a direita, para a esquerda, deslizou o quadril para trás.
— Júlia, tudo bem. Desculpa então.
Coloquei a minha mãe direita sobre a sua mão esquerda. Desculpas, mesmo quando não são sinceras, costumam funcionar. E, por um objetivo importante, devem ser usadas sem parcimônia ou vergonha. Naquela noite, não lembro se estava sendo verdadeiro. Talvez tenha sido só uma oportunidade de conseguir um primeiro contato físico. Se ela demorasse alguns segundos para repelir a minha mão, eu iria dali para um carinho no cabelo, devolvendo a franja para trás da orelha, para um abraço, um beijo no pescoço, para os dedos subindo pela nuca. Mas Júlia puxou a mão rápido demais, não sei se assustada, se surpresa. Podia estar apenas com raiva de mim, por estar atrapalhando sua carreira. Ou acertou em cheio e percebeu que a minha real intenção ali, depois daquele toque, era apenas comê-la.
Houve um silêncio que eu disfarcei dando um gole no chope e olhando para o lado. Júlia também bebeu mais um pouco. E eu soube ali que nosso grau de intimidade não evoluiria naquele primeiro encontro. O próximo copo demorou a ser pedido, depois demorou a ser tomado, o colarinho desaparecendo até virar uma linha, até virar um nada. E quando o chope demora muito a descer, é sinal de que o encontro está no fim, de que a conta será pedida em breve, de que a outra pessoa já está pensando no melhor caminho a fazer para chegar em casa, em quantas horas ainda terá para dormir, que a tv ficará ligada no programa do Jô Soares só para haver um barulhinho no quarto até o sono chegar, se ligará o ar, se há necessidade de um cobertor. Essa foda está perdida e será adiada até uma nova oportunidade. E a sua chance pode ser maior se você não acusar o golpe. É preciso deixar claro que a intenção não existiu, que foi criada na cabeça da outra pessoa, não na sua. Aí sim a desconfiança vira uma dúvida. E as dúvidas precisam ser tiradas, mesmo que não exista ainda uma vontade. Porque o ser humano é assim: consegue controlar a vontade, mas não a dúvida.
Me adiantei e pedi a conta antes que a Júlia levantasse a mão para o garçom. Mais pessoas chegavam do que saíam do Amarelinho. Enquanto conferia o valor, virei o resto da bebida e estiquei o braço, nem pensar, Júlia, deixa que eu pago. Seguimos juntos até o metrô e nos beijamos burocraticamente na bochecha.
No dia seguinte, quando Júlia chegou ao escritório, eu já estava na sala da Mirtes pedindo demissão. Com a sobriedade de um futuro profissional sério, aleguei falta de tempo para os estudos, inventei na hora que gostaria de fazer concurso para a promotoria, pedi desculpas por ter ficado tão pouco tempo e agradeci por ter aprendido muito com os advogados e com a Júlia. Mirtes lamentou sem tristeza. Era provável que tenha percebido, tão rápido quanto eu, que o direito nunca seria a minha profissão.
Pedir para sair era o mais justo a se fazer com ela, comigo e, sobretudo, com Júlia. Isso seria percebido em breve quando, por mágica, todas as atas seriam copiadas sem problemas, nenhum comunicado do Diário Oficial passaria batido pelo escritório e os prazos dos processos não voltariam a ser furados.
No momento em que saí da sala da Mirtes, estava criado em Júlia algo ainda mais poderoso do que a dúvida: a culpa. Eu neguei, sem me esforçar muito, que tinha pedido demissão por causa da conversa da noite anterior. Expliquei mais uma vez o que achava do escritório, da profissão, disse que aquilo não era pra mim, que estava me matando a cada dia que passava ali dentro, que queria escrever e não completar espaços em petições já semiprontas, que não queria chamar mais ninguém de doutor ou de Vossa Excelência, que não usaria terno nunca mais, que, sim, eu também achava que a estava prejudicando e que, mesmo que tentasse, não conseguiria melhorar meu desempenho num trabalho que considerava medíocre, que na verdade eu deveria agradecer-lhe por ter mostrado o que eu não via, ou que não percebia, que ela fez um bem enorme para mim quando tentou defender o próprio emprego, que aquilo só me mostrou como eu nunca me dedicaria ao direito do mesmo jeito que ela se dedicava, que aquilo tudo era uma perda de tempo, e que todos nós éramos jovens demais para perder tempo.
E Júlia me abraçou. Não me deu a mão, não me beijou no rosto. Me abraçou. E pediu por favor para me pagar um chope naquela mesma noite porque estava se sentindo muito mal pelo que tinha acontecido. Ali, nós já sabíamos que os chopes seriam poucos e mais gelados, porque seriam bebidos mais rapidamente. Ao chegarmos no Amarelinho, nos sentamos um ao lado do outro, as pernas encostando sem querer por baixo da mesa. Ela me pedia desculpa, dizia para eu reconsiderar a minha posição. Coloquei minha mão sobre a sua, disse para que ficasse tranquila, que eu tinha certeza do que acabara de fazer. E que seria melhor para mim tanto quanto seria para ela. Júlia não recolheu a mão. E eu fui dali para um carinho no cabelo, devolvi a franja para trás da orelha, abracei, dei um beijo no pescoço, passei os dedos pela nuca e escorreguei a boca até encostar a minha língua na dela.
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Mais sobre a obra
Eduardo, um publicitário carioca vivendo às sombras do sucesso de uma campanha de chocolate, tem que lidar com o Alzheimer da mãe. Numa trama aparentemente simples, e numa linguagem marcada pelo sarcasmo, Marcelo Conde expõe as contradições da masculinidade urbana, sem poupar seus leitores da violência inerente a ela.
Para Paulo Scott, ao eleger “um protagonista tóxico absorvido pelos incontornáveis endividamentos do corpo e da alma”, Ao perdedor, os pombos é um romance que “prende, diverte, envolve, abala”.